Por Michel Sitnik / Jornal da USP (11/11/2025)
Celebradas como um dos maiores marcos da medicina contemporânea, as terapias genéticas ainda têm preços proibitivos para a maioria das pessoas e mesmo para os sistemas de saúde. Para a geneticista Mayana Zatz, professora titular do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco, a ciência precisa avançar junto com políticas públicas que garantam acesso e sustentabilidade.
“A terapia gênica tem um custo absolutamente escandaloso, de US$ 2 milhões a US$ 3 milhões por paciente. É totalmente inacessível e impossível de ser absorvido pelo sistema público de saúde”, afirma. “Nós temos que brigar para tornar esses tratamentos viáveis e disponíveis a todos, mas isso não depende só dos cientistas. É preciso políticas públicas, recursos e planejamento para garantir equidade. Por isso, precisamos pensar em alternativas para que esse tipo de tecnologia não seja privilégio de poucos.”
Diante desse cenário, Mayana defende que o País invista não apenas em tratamentos de ponta, mas também em medidas de prevenção. Ela cita o exemplo de um projeto piloto desenvolvido no Centro de Estudos do Genoma voltado à avaliação genética de riscos antes da concepção.
“Nós propusemos um projeto de triagem de casais em idade reprodutiva para identificar predisposições genéticas antes do nascimento de uma criança afetada. Em vez de agir depois que o problema aparece, poderíamos prevenir doenças graves e poupar famílias de um sofrimento imenso, além de reduzir os custos para o sistema público de saúde”, explica. “Muitos casais só descobrem que têm risco genético depois que nasce o primeiro filho com a doença, e aí já é tarde. A ideia é fazer esse mapeamento antes, de forma acessível e gratuita, para evitar o abalo familiar e reduzir custos. O benefício para o governo e para as famílias seria imenso.”
Os alertas da pesquisadora foram feitos em outubro para um público de mais de 200 jornalistas e comunicadores no curso Divulgação científica para comunicadores e jornalistas, realizado pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP com o objetivo de promover a cultura científica entre estes profissionais e reduzir a distância entre a ciência e a sociedade ao contribuir com uma melhor compreensão desse universo.
Para a professora, a responsabilidade dos comunicadores é crucial, já que a informação é um dos pilares dessa mudança de cultura. Ela ressalta que o desconhecimento sobre genética ainda é grande, o que faz com que a sociedade valorize mais os tratamentos milagrosos do que as estratégias preventivas.
“A mídia tem um papel essencial para levar esse conhecimento à população. Muitos casais dizem: ‘Mas nunca teve caso na minha família’. É preciso explicar que todos somos portadores de mutações genéticas e que determinadas doenças são o que chamamos de recessivas, em que a pessoa tem que receber uma mutação da mãe e outra do pai e, dessa forma, em dose dupla, aparece a síndrome. É o caso, por exemplo, da Atrofia Muscular Espinhal (AME), para a qual até existe um tratamento disponível, mas com custo que pode chegar a R$ 6 milhões ou R$ 7 milhões por paciente”, exemplifica.
Outro caso bastante estudado nos laboratórios do IB é a Distrofia Muscular de Duchenne: “Os meninos são afetados por mutações em um gene que causa deficiência de uma proteína chamada distrofina. Eles vão perdendo força muscular e, com 10 anos, já estão confinados a uma cadeira de rodas, com baixa expectativa de vida. Hoje, com ajuda respiratória, até vivem mais, mas totalmente dependentes.
Dois terços dos casos são herdados da mãe e um terço é mutação nova, que aconteceu apenas naquele menino e não traz risco de repetição. Mas toda vez que a gente descobre que a mãe é portadora, estudamos todas as mulheres da família — irmãs, inclusive — e podemos identificar as portadoras. Elas não têm sintoma nenhum, e, com isso, conseguimos prevenir o nascimento de novos afetados”, explica, ressaltando que a terapia gênica atualmente disponível para esta doença é bastante limitada, aumentando a capacidade de andar em apenas alguns meses e com custo de US$ 3 milhões. “Não tem SUS que aguente um custo desses, e não é nem para uma cura, mas simplesmente um tratamento pontual”, assinala.
Em sua visão, a comunicação científica deve ser aliada da saúde pública. “A informação é a melhor forma de prevenção e os jornalistas têm um papel fundamental. A população ainda associa genética a destino, quando na verdade ela oferece possibilidades de escolha e prevenção. Precisamos de uma imprensa que traduza a ciência com clareza, para que a informação se transforme em saúde.”

Laboratório de DNA do Centro de Estudos do Genoma Humano do IB realiza uma ampla gama de testes genéticos para a população – Foto: Genoma USP
A experiência das famílias
Não é apenas antes da concepção de um novo bebê que o aconselhamento genético pode ser valioso. Mãe de um adolescente com dificuldades motoras severas, Daniela Vialli comenta sobre a importância desses testes genéticos na vida da família mesmo após o nascimento de uma criança com sintomas. Ela conta que, ainda pequeno, o filho, hoje com 13 anos, começou a manifestar comportamentos que chamaram a atenção, em especial a ausência de fala. Como é muito comum nestes cenários, a família encontrou dificuldades até chegar em um diagnóstico, que afinal ficou definido como apraxia da fala.
“Esta conclusão nos ajudou muito a encaminhar o tratamento e, após anos de terapias constantes em diversas frentes, temos visto evoluções importantes. No entanto, sabíamos que esta doença é, na verdade, nada mais do que um sintoma, que aparece por diversas causas. Dessa forma, ainda havia muita coisa no escuro e muita angústia da nossa parte, em especial quanto à possibilidade de que fosse apenas a ‘ponta do iceberg’, com chances de haver outros riscos e predisposições envolvidos e a necessidade de outros cuidados com a saúde dele”, explica.
Por meio de mapeamentos genéticos, os pesquisadores conseguem identificar causas de diversas doenças e também investigar probablidades de herança de mutações para descendentes – Imagem: PublicDomainPictures /Pixabay
Foi então que o menino participou de um estudo clínico do Genoma USP em parceria com a Associação Brasileira de Apraxia de Fala na Infância (Abrapraxia).
“Fizemos o exame de exoma [teste genético que analisa todas as regiões do DNA que codificam proteínas para identificar mutações que possam causar doenças genéticas] e o resultado apontou para a microdeleção no gene TRIP12, que é uma perda de material genético neste segmento e que compromete o desenvolvimento neuropsicomotor”, conta Daniela, destacando a sensação de alívio e leveza proporcionada pelos exames.
“Para nós, foi uma virada de página que tirou muito peso dos nossos ombros e acalmou nossa ansiedade sobre possíveis riscos futuros, necessidade de tratamentos adicionais, ou até mesmo a aflição de não saber a origem desta mutação. No final, o prognóstico foi bem positivo, sem preocupações adicionais, e também soubemos que tratava-se de uma mutação ‘de novo’, ou seja, uma alteração que apareceu pela primeira vez no indivíduo e não foi herdada dos pais. Além disso, com um diagnóstico preciso, temos uma documentação que nos permite ter todos os direitos previstos em lei”, disse.
Achados acidentais
Os avanços científicos trazem também dilemas éticos e humanos complexos. No aconselhamento genético, o trabalho do cientista frequentemente ultrapassa os limites do laboratório e toca em questões pessoais delicadas. “Às vezes, ao investigar o risco de um casal ter uma criança com doença genética, descobrimos que o pai não é o pai biológico. E aí vem o dilema: contamos ou não contamos? Cada caso é um caso, e a gente precisa agir com extremo cuidado para não destruir uma família. Já consultei bioeticistas, e eles dizem que posso ser processada nas duas situações — se contar ou se não contar. É muito complexo. Nesses momentos, o médico precisa virar também um pouco terapeuta, para gerenciar a crise que isso gera”, contou Mayana Zatz aos jornalistas que participavam de sua palestra.
Essas situações se repetem em outros contextos, como nos chamados “achados acidentais”, quando um exame genético revela algo inesperado. “Você pode estar estudando o genoma de uma criança com uma doença muscular e descobrir, por acaso, uma mutação associada ao câncer de mama hereditário. O que fazer? Contar pode aumentar a angústia de uma família já abalada; não contar pode significar ignorar um risco real. Nós discutimos coletivamente cada caso, tentando sempre acertar, mas nem sempre há uma resposta certa.”
Serviço
Casais interessados em participar dos serviços de aconselhamento genético podem obter mais informações pelo site do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco: genoma.ib.usp.br.
Os pesquisadores do centro também divulgam conteúdos e esclarecimentos com linguagem acessível no Instagram @genoma.usp.


